A população brasileira é tida como sub-humana frente à União Europeia (UE). A constatação é da pesquisadora Larissa Bombardi, que estuda os impactos e o funcionamento do comércio mundial de agrotóxicos. “Quando eu olho o fato de que no Brasil o resíduo de glifosato autorizado na água potável é cinco mil vezes maior do que aquele autorizado na União Europeia. Quando eu vejo que o resíduo de malationa no Brasil é 400 vezes maior do que o autorizado na União Europeia, sou obrigada a pensar que, no conjunto das relações internacionais, a população brasileira, latino-americana e africana é tida como sub-humana. Nós valemos menos.”

Dos dez agrotóxicos mais vendidos no Brasil, cinco são proibidos na UE. Isso significa que são autorizados em território nacional agrotóxicos cancerígenos, que provocam má formação fetal, alterações hormonais, infertilidade e mal de Parkinson, por exemplo.

 

Por trás disso, empresas como as alemãs Bayer e Basf, as estadunidenses Corteva e FMC, a estatal chinesa Syngenta e a indiana Upl venderam, em 2020, juntas, US$ 43 bilhões dessas substâncias. Mais de 80% desse mercado é controlado pela Bayer, Corteva e Syngenta.

 

Novo colonialismo

A autorização de venda de agrotóxicos proibidos na UE para nações do sul global, como o Brasil, coloca o país numa nova espécie de colonialismo, que se une, segundo Bombardi, à concentração de terras, à violência contra povos originários e às nossas origens escravocratas.

“A gente tem uma oligarquia que controla politicamente o país, que representa esse monopólio das terras no Brasil, que se afina com os interesses externos. O campesinato brasileiro é um campesinato que nasce sem terra. É um campesinado excluído. É uma sociedade que se constrói na exclusão.”

A análise está posta em Agrotóxicos e Colonialismo Químico, livro lançado em outubro do ano passado e divulgado pela própria autora no Brasil somente neste mês, quando ela finalmente volta – ainda que de passagem – ao país. Bombardi está há três anos exilada na Europa por conta de ataques sofridos após a divulgação do Atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, publicado em 2017.

Dentre as ameaças sofridas por ela estiveram um pedido para “fechar a boca, porque está falando demais” em um programa de rádio e um convite para passear em um avião de pulverização de agrotóxicos. “Em um determinado momento, os movimentos sociais disseram: ‘Você não pode continuar usando as mesmas rotas, os mesmos horários, tem que evitar rotina’”, o que é humanamente impossível para uma mãe solo de dois filhos.

 

Desigualdade de gênero

Para além das intimidações à sua integridade fisíca, Larissa sofreu o que ela chama de “terrorismo psicológico” quando tentaram desqualificar sua produção científica dizendo que seus dados não eram corretos. “Aquilo que a gente mais zela é pelo cuidado, pelo rigor científico.”

A descredibilização do trabalho científico feito de mulheres é o ponto de partida em Agrotóxicos e o Colonialismo Químico que traz na epígrafe um pouco do trabalho da bióloga Rachel Carson (1907-1964) e de toda a desqualificação que ela sofreu sendo chamada de “louca”, “comunista” e “histérica” por expor os efeitos do DDT [Dicloro-Difenil-Tricloroetano] e de outros agrotóxicos há mais de 60 anos. “É muito interessante trazer isso à luz, porque ela foi desqualificada como mulher, é algo que atravessa as décadas todas, de muitas mulheres que têm lidado com esse sistema.”

Ao longo das cerca de 85 páginas a pesquisadora traz um panorama da desigualdade de gênero que permeia os impactos do uso e venda de agrotóxicos no Brasil e apresenta iniciativas de agroecologia protagonizadas por mulheres.

“As mulheres acabaram sendo as guardiãs dessas práticas e são justamente quem, muitas vezes, através dessa mimetização da natureza, estão protagonizando as experiências agroecológicas, não só protagonizando, mas multiplicando, trocando entre elas, fazendo intercâmbios de conhecimentos, de sementes, de resistências, de formação política, etc.”

 

Por outro lado, os efeitos das substâncias tóxicas recaem de forma muito mais severa sobre as mulheres, indo de abortos espotâneos a problemas psicológicos.

Commodities

Bombardi é a convidada desta semana do BdF Entrevista e denuncia que grande parte da agricultura do mundo hoje é voltada para a produção de energia ou de commodities, que são produtos de origem agropecuária ou de extração mineral, em estado bruto ou em pequeno grau de industrialização e produzidos em larga escala, como a soja, o milho e o algodão.

No caso do Brasil, eles dominam a maior parte da produção agrícola total. É por isso que impor a monocultura à natureza é dar um tiro no próprio pé. “Estamos vendo uma grande parte dos efeitos climáticos, como o aumento da temperatura global, relacionados com o desmatamento e com o uso de fertilizantes químicos.”

O uso de agrotóxicos varia significativamente entre os estados, refletindo diretamente na produção de commodities. Em termos de uso por hectare, os estados mais destacados são Mato Grosso, Rondônia, Goiás e São Paulo. Em 2019, Mato Grosso liderou, com aproximadamente 121 mil toneladas de ingredientes ativos de agrotóxicos consumidos, seguido por São Paulo, com 92 mil toneladas, Goiás, com 49 mil toneladas e Mato Grosso do Sul, com 38 mil toneladas.

 

Além dos efeitos do monocultivo nas mudanças climáticas, a insegurança alimentar, sobretudo entre a população rural, ainda é alta. A fome ainda está acima do patamar de 2013, apesar de ter recuado nos últimos cinco anos. Em 2023 a insegurança alimentar era realidade para 64 milhões de pessoas, cerca de 8,6 milhões de brasileiros sofreram com essa privação grave. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Em 2023, o percentual de lares enfrentando insegurança alimentar é inferior ao registrado em 2017 e 2018 (36,7%), durante a recessão, mas superior ao de uma década atrás (22,6%). Nas áreas urbanas, aproximadamente 8,9% dos lares sofreram com insegurança alimentar moderada ou grave, enquanto nas áreas rurais esse percentual era de 12,7%.

Parte da explicação da persistência da fome no Brasil vêm da falta de cultivo de alimentos básicos da mesa do brasileiro, fazendo com que haja a necessidade de importar, aumentando assim os preços nos supermercados. “A área para cultivo de feijão diminuiu 40%, a de arroz, cerca de 30%. O preço dos alimentos flutuam ao sabor do mercado internacional inclusive, por isso, o Brasil importa. É uma lógica que não está voltada para a segurança e para a soberania alimentar.”

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