Economia Solidária e a reorganização do governo Bolsonaro: o caminho é a mobilização

por Leonardo Pinho

A lei 13.844 cristaliza uma concepção de governo, na qual a participação social, os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais são relegados ao terceiro plano ou diretamente extintos. Essa lei é fruto da Medida Provisória 870/2019, que apresentou ao país a perspectiva de organização do governo de Jair Bolsonaro e suas prioridades na gestão pública. Após a tramitação no Congresso Nacional e centenas de contribuições ao texto, a medida foi aprovada com diversas modificações e enviada ao Governo no dia 11 de maio de 2019.

 

A lei promulgada extinguiu o Ministério do Trabalho, que existia desde 26 de novembro de 1930 e que simbolizou um marco na história nacional, tendo como função estratégica ser uma ponte, um espaço de pactuação e formulação de políticas públicas entre Capital e Trabalho. A sua extinção revela diretamente a forma como esse governo se comportará pelos próximos anos: favorecer o Capital, sem qualquer espaço de mediação entre Capital e Trabalho.

 

Com a extinção do Ministério do Trabalho, a antiga Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes) teve suas atribuições enviadas ao Ministério da Cidadania. As competências que têm relação com a economia solidária ficaram restritas à política de assistência social e à de renda, associada ao conceito de cidadania, evidenciando que não é nesse ministério que se define estratégias da política de trabalho e de desenvolvimento do país. A Secretaria de Inclusão Produtiva Urbana abrigará o que era a Senaes. Essa visão mutilou o conceito de economia solidária como uma estratégia de desenvolvimento, que responde aos empreendimentos econômicos solidários urbanos e rurais. Como também prevê: XXIV – cooperativismo e associativismo urbanos.

 

A Medida Provisória 870/2019 revela também a visão de gestão do Estado brasileiro, na qual as entidades e organizações da sociedade civil, são vistas como “inimigos”, “adversários”, a serem “monitorados”: “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional”. Importante destacar que essa alteração não poderia ser realizada via MP, uma vez que a liberdade de organização está prevista na Constituição Federal.

 

Após grande pressão social, questionamentos de diversos órgãos e emendas realizadas no Congresso Nacional, o novo texto alterou o conteúdo da MP: “Art. 5º À Secretaria de Governo da Presidência da República compete: I – assistir diretamente o Presidente da República no desempenho de suas atribuições, especialmente: a) no relacionamento e na articulação com as entidades da sociedade e na criação e na implementação de instrumentos de consulta e de participação popular de interesse do governo federal”.

 

Consea

A pressão social exercida pelos “banquetaços” por todo o país, contudo, não foi suficiente para reverter a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), mesmo com 12% das 541 emendas feitas sendo referentes à volta do órgão. A reversão no Congresso Nacional foi vetada pelo governo, o art. 24 que trata da estrutura básica do Ministério da Cidadania vetou na Lei o Inciso XVI do art. 24 “XVI – o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional”.

 

Banquetaços realizados em todo Brasil pediam a permanência do Consea (Foto: Thays Ferrari Puzzi)

 

Importante salientar que o Consea propôs o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Cisternas que promove o acesso à água no semiárido brasileiro; a ampliação e aperfeiçoamento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), com a determinação de que 30% da alimentação seja comprada dos agricultores familiares; a aprovação da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica; a proposição da Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PL 6.670/2016); e a rejeição do chamado Pacote do Veneno (PL 6299/02).

 

O decreto nº 9.759, de 11 de abril de 2019 colocou em dúvida a continuidade ou não do Conselho Nacional de Economia Solidária (CNES), no entanto, a nova Lei 13.844/19 reafirmou que na estrutura do Ministério da Cidadania o CNES se manteria. Precisamos a partir dessa lei também refletir como será o funcionamento do CNES.  O mandato atual dos conselheiros e conselheiras será mantido? A composição irá respeitar o que foi construído coletivamente no decreto nº 5.811, de 21 de junho de 2006 ou será alterado arbitrariamente? As reuniões serão presenciais ou por videoconferências? O governo irá providenciar o acesso em todos os locais que tenham conselheiros e conselheiras, este planejamento já foi realizado? Com qual periodicidade serão realizadas as reuniões do CNES?

 

É importante também lembrar que o cooperativismo e o associativismo urbano serão tratados no âmbito do Ministério da Economia. Diante desse cenário, em que a Economia Solidária sofre canetadas e perde sua centralidade, precisamos reafirmar quais são nossas prioridades: economia solidária como estratégia de desenvolvimento e reconhecimento através de lei geral como uma política de Estado.

 

A primeira Conferência Nacional de Economia Solidária (Conaes) ocorreu em 2006, com o tema “Economia Solidária como Estratégia e Política de Desenvolvimento”.  Ao longo dos anos, a Conaes construiu sua legitimidade baseada em processos amplos de diálogo social, onde a construção das políticas públicas e suas prioridades não são canetadas do executivo. Para se ter uma ideia, a segunda Conaes contou com 27 conferências estaduais, nas quais foram eleitos 1.460 delegados(as), sendo 730 de empreendimentos solidários, 365 do poder público e 365 de organizações da sociedade civil. Foram realizadas 187 conferências territoriais ou regionais, em 2.894 municípios brasileiros, com 15.800 participantes de segmentos representativos locais da Economia Solidária.

 

Na perspectiva de afirmar a Economia Solidária como estratégia de desenvolvimento, a Unicopas tem apostado na mobilização e para isso tem realizado processos públicos de discussão social, por meio de audiências públicas e seminários.

 

Em maio, na audiência pública na Câmara dos Deputados, a Unicopas articulou para que o senador Jacques Wagner (PT-BA) apresentasse seu relatório ao Projeto de Lei da Câmara n° 137 de 2017, bem como, que o mesmo assumisse a relatoria na Comissão de Assuntos Econômicos que se realizou no dia 11/07/2019 na Lei Geral da Economia Solidária e anunciasse a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 69/2019, que propõe incluir a Economia Solidária entre os princípios da Ordem Econômica.

 

Em junho, a Unicopas se mobilizou novamente para exigir apresentação do relatório na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público (CTASP) e sua aprovação do Projeto de Lei (PL) nº 519/2015 na Câmara dos Deputados, que irá democratizar e reconhecer o cooperativismo solidário.

 

Potencial da economia solidária

Mas, por que defendemos e promovemos o cooperativismo e a economia solidária enquanto instrumentos produtivos para o Brasil? Porque eles são ferramentas eficazes na promoção de um desenvolvimento centrado na sustentabilidade.

 

O potencial do cooperativismo e da economia solidária no Brasil e no mundo é enorme. Dados da Aliança Cooperativa Internacional mostram que, mundialmente, três milhões de cooperativas contribuem significativamente com o crescimento econômico, com geração de empregos estáveis e de qualidade. São mais de 280 milhões de pessoas em todo o mundo trabalhando em cooperativas, o que representa 10% da população empregada. Além disso, as 300 maiores cooperativas do mundo geram US$ 2,1 bilhões de dólares ao mesmo tempo em que proporcionam os serviços e a infraestrutura que a sociedade necessita para prosperar.

 

No Brasil, há mais de 6,8 mil cooperativas distribuídas em 13 ramos de atividades, ultrapassando 14,2 milhões de associados e gerando 398 mil empregos formais, segundo dados da Agenda Institucional do Cooperativismo 2019.

 

E esses números podem ser ainda maiores. Isso porque o cooperativismo é uma das formas associativas de organização do trabalho, que também podem ser encontradas em associações produtivas e empresas de autogestão.

 

Já no campo da economia solidária, conforme dados mais recentes do Sistema de Informação da Economia Solidária (Sies), da extinta Senaes, atualmente no Brasil, existem 19.708 empreendimentos que reúnem 1 milhão 423 mil e 631 associados, em 2.804 municípios. Estima-se que a economia solidária movimente, por ano, R$ 12 bilhões.

 

Isso prova que se avançarmos na conquista de políticas públicas em prol do cooperativismo e da economia solidária o Brasil, nosso país, além de ter a oportunidade de retomar o crescimento, milhões de brasileiras e brasileiros poderão ter suas vidas transformadas.

 

Leonardo Pinho é presidente da Central de Cooperativas UNISOL Brasil, central afiliada à Unicopas, e presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos.

 

 

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

 

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